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Leonardo Boff

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

As armadilhas dos analgésicos


Fonte: IstoÉ
Notícia publicada:26/11/2011
Autor:Francisco Alves Filho e Monica Tarantino

Um levantamento realizado pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), órgão do governo americano, divulgado recentemente acendeu um alerta vermelho para médicos e pacientes de todo o mundo. A pesquisa revela que, nos Estados Unidos, o número de mortes por overdose de analgésicos triplicou de 1990 a 2008. No último ano coberto pelo estudo, foram registrados 14,8 mil óbitos. A informação agrava a preocupação das autoridades mundiais de saúde em relação ao crescimento do consumo dessa classe de medicamentos, indicada para o alívio da dor. De acordo com a consultoria internacional IMS Health, de 2006 a 2010 o mercado global desses remédios teve crescimento de 27%. No Brasil, o segmento movimentou US$ 902 milhões em 2010, magnitude que torna o País líder de consumo entre as nações emergentes e sexto maior mercado do mundo, à frente de países como Japão e Espanha.

Para se compreender as origens e as consequências desse problema, é necessário enxergar dois aspectos. Primeiro, deve-se entender as diferenças entre os tipos de analgésicos. Basicamente, há os comuns, aqueles comprados em farmácia e sem receita médica; os anti-inflamatórios com efeito analgésico, também geralmente comercializados sem dificuldade; e os narcóticos, que usam em sua formulação substâncias derivadas do ópio e necessitam de prescrição. São estes os responsáveis pelas mortes por overdose registradas no relatório americano.

Depois, não se pode analisar esse fenômeno sem respeitar as particularidades de cada país, principalmente quando se buscam respostas para explicar o aumento do consumo. Tome-se a situação dos Estados Unidos, por exemplo. Por lá, a prevalência é de consumo abusivo de opioides. No Brasil, o consumo é maior de analgésicos comuns ou anti-inflamatórios com efeito analgésico. “E precisamos usar mais opioides, porque eles aliviam a dor oncológica e outras dores agudas”, diz o neurologista João Batista Garcia, presidente da Sociedade Brasileira de Estudos da Dor. “O fato de não usarmos tanto esse tipo de remédio resulta no sofrimento de muitos pacientes.” Em comum a qualquer nação está a realidade de que, em geral, os indivíduos apresentam baixa tolerância à dor, preferindo recorrer às medicações.

O fato é que o abuso no consumo dos remédios – opioides ou comuns – tornou-se um dos maiores desafios da medicina atual. Na medida certa, eles aliviam a dor. Mas, em excesso, podem ser extremamente ameaçadores à saúde. Por aqui, uma das categorias mais usadas incorretamente é a de medicamentos contra dor de cabeça, normalmente vendidos sem receita médica. E o que a maioria dos pacientes desconhece é que, quando há consumo sem orientação adequada, corre-se o risco de desenvolver a chamada cefaleia de rebote, causada justamente pela ingestão acima do recomendado. Um trabalho feito pelo neurologista Ariovaldo Alberto Júnior, diretor da Sociedade Brasileira de Cefaleia, ilustra bem esse problema. Em um estudo na cidade mineira de Capela Nova, o médico descobriu que 3,6% da população, de apenas dois mil habitantes, tinha dor de cabeça diariamente. “A principal causa era o uso abusivo de analgésicos”, disse.

A partir da constatação, foi implantado na cidade um programa de desintoxicação que já dura oito meses e inclui iniciativas de educação para os médicos – o objetivo é que parem de indicar analgésicos indiscriminadamente. O programa é semelhante a outro, aplicado também pela equipe do neurologista mineiro, no Tribunal de Contas de Minas Gerais. De mil funcionários, 43% tinham dor de cabeça todos os dias. Os empregados foram acompanhados por quatro meses e verificou-se a redução de mais de 50% da ocorrência da dor e da utilização de remédios. O trabalho foi apresentado no congresso deste ano da Academia Americana de Cefaleia.

A lista de prejuízos provocados pela utilização excessiva de remédios contra dor de cabeça é mais ampla. “O abuso pode causar lesão renal ou sangramento gastrointestinal”, afirma a neurologista Norma Fleming, coordenadora do Ambulatório da Clínica da Dor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. De maneira geral, esses danos são os mesmos causados por todos os outros tipos de analgésicos consumidos incorretamente. Há outros efeitos colaterais, porém que precisam ser lembrados. “O exagero na ingestão pode ocasionar sérias complicações hepáticas e aumenta os riscos de surdez especialmente após os 60 anos, além de interferir na formação das células do sangue”, explica o pediatra e toxicologista Anthony Wong. Ele é um dos maiores especialistas mundiais no assunto e diretor do Centro de Assistência Toxicológica (Ceatox) do Hospital das Clínicas de São Paulo.

Essas eram até agora as armadilhas mais conhecidas. No entanto, outras, igualmente graves, estão sendo identificadas por pesquisas mais recentes. Na semana passada, cientistas da Universidade de Edimburgo, na Escócia, analisaram 663 pacientes encaminhados à Unidade Escocesa de Transplante de Fígado por causa de problemas no órgão induzidos pelo uso do paracetamol, um dos analgésicos mais usados. Essas pessoas foram observadas por seis anos. Nesse período, os pesquisadores descobriram que os 161 pacientes que abusaram continuamente desses remédios, excedendo frequentemente a dose limite, tiveram efeitos colaterais piores do que aqueles que tomaram uma grande quantidade de comprimidos de uma única vez. Esse tipo de overdose escalonada, como definiram os pesquisadores, aumentou a gravidade das lesões e os riscos dessas pessoas de morrer. “Eles não tomaram overdoses grandes e únicas, aquelas que ocorrem em um único momento. Mas no decorrer do tempo o dano se acumula e o efeito pode ser fatal”, disse Kenneth Simpson. O trabalho foi publicado na revista científica “British Journal of Clinical Pharmacology”.

Na Dinamarca, uma pesquisa traçou uma relação entre o uso de analgésicos comuns e alguns tipos de arritmia cardíaca. A pesquisa avaliou mais de 30 mil pacientes e concluiu que esses medicamentos podem levar a dois tipos de descompassos nas batidas do coração: a fibrilação atrial e o flutter atrial. Ambos aumentam o risco de paradas cardíacas, derrames e óbito. O trabalho analisou o impacto de dois tipos muito usados contra a dor, os anti-inflamatórios com efeito analgésico não esteroides e os de nova geração, conhecidos como inibidores seletivos COX-2.

Alguns estudos estão jogando luz particularmente sobre os riscos do consumo exagerado na gravidez e infância. Um deles, feito nos Estados Unidos, avaliou o impacto do uso de opioides nesse período. Segundo o CDC americano, o uso de substâncias como a codeína, a oxicodona ou a hidrocodona, antes ou no início da gestação, está relacionado, em alguns casos, a defeitos como espinha bífida, hidrocefalia e glaucoma congênito. Os cientistas também acreditam que os remédios elevam aproximadamente duas vezes os riscos de o bebê ter a síndrome de hipoplasia do coração esquerdo (um dos defeitos cardíacos mais críticos). A última pesquisa, divulgada na semana passada, mostrou que um dos riscos da dose errada dos opioides é a desidratação infantil. “Esses remédios são sedativos e, por isso, muitas crianças não comem ou bebem tanto quanto de costume. Elas não acordam ou não conseguem ingerir a quantidade necessária sob efeito das medicações”, disse à ISTOÉ William Basco, diretor da divisão de Pediatria Geral da Universidade Médica da Carolina do Sul (EUA) e autor do trabalho. Esses remédios também tornam a respiração mais lenta. Em alta quantidade, isso pode levar à parada respiratória e até matar.

Uma das circunstâncias mais delicadas ao se investigar o problema é estabelecer quando há exagero no consumo e se pode determinar que uma pessoa tornou-se dependente. As situações de abuso, para os especialistas, ficam caracterizadas quando a pessoa começa a tomar o medicamento além da dose indicada. Ela acredita, por exemplo, que uma aspirina só não vai fazer efeito e toma duas. Ou ingere um comprimido e não espera o tempo necessário para que os efeitos se apresentem e já quer tomar outro. Mais um sinal importante é tomar o analgésico preventivamente, sem ter sintoma algum.

A dependência é mais grave e mais comum em relação a medicamentos da categoria dos anti-inflamatórios e derivados de opioides. “Para configurar o quadro de dependência, observamos sinais físicos e psicológicos”, diz a médica Rioko Sakata, coordenadora do Instituto da Dor da Universidade Federal de São Paulo. Nessa situação, a pessoa sente falta do remédio, mesmo sem ter os sintomas de qualquer doença, e não consegue deixar de tomá-lo, ainda que queira evitar. Pode haver também um aumento da tolerância: a pessoa necessita tomar cada vez mais comprimidos para ter o mesmo efeito. Na ausência do remédio, o indivíduo pode apresentar sintomas de síndrome de abstinência, como boca seca, irritação e taquicardia.

Entre os mais sujeitos à dependência dos analgésicos opioides estão portadores de fibromialgia (doença caracterizada por dor generalizada no corpo) e de dor de coluna. Também estão sob essa ameaça os profissionais de saúde. “São médicos, especialmente anestesistas, cirurgiões, emergencistas e profissionais de farmácia e de enfermagem”, diz o psiquiatra Marcelo Niel, do Programa de Assistência a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo Proad/Unifesp.

Os caminhos que levam à dependência são iguais aos que empurram à dependência de drogas ilícitas. A exemplo da cocaína e da maconha, os opioides atuam na liberação de substâncias associadas aos mecanismos de recompensa. “Quanto mais prazer a droga estimula e libera, maior o risco de se sentir dependente porque a pessoa fica com um registro dessa sensação no cérebro”, explica Niel. “E é uma sensação tão boa que o cérebro quer repeti-la a todo momento.” No cérebro das pessoas que efetivamente se tornam dependentes, essa onda de alívio da dor ou prazer oferecida pelos medicamentos é interpretada como um convite irrecusável.

Com ajuda especializada, porém, é possível deixar de ser dependente. Há pelo Brasil alguns centros especializados na ajuda a pacientes. É uma batalha difícil, mas que pode ser vencida. A estratégia começa por uma fase de desmame. Ou seja, diminuir o consumo gradativamente. No caso dos analgésicos comuns, há duas formas de se fazer isso. Uma delas é tratar o paciente em casa. A medicação abusiva é retirada e são indicados outros medicamentos para controlar o problema de saúde que deu origem ao uso do remédio, como uma dor nas costas. Os especialistas também ensinam a usar os recursos farmacológicos para prevenir crises, o que é feito sob monitoramento. Mas há também situações em que o paciente sente enorme dificuldade de evitar os analgésicos ou tem sintomas muito intensos. “Essas pessoas poderão ser internadas por um período que vai de dez a 15 dias”, explica o neurologista Antonio Cezar Galvão, do Centro de Dor do Hospital Nove de Julho, em São Paulo. O processo todo demora, em média, de dois a três meses.

Quando a dependência é de opioides, o processo de desmame é um pouco mais complicado porque há risco de síndrome de abstinência. “Não podemos interromper subitamente o uso de opioides”, explica o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, coordenador do Proad. “Se isso for feito, a pessoa pode correr risco de vida. Alguns pacientes apresentam taquicardia e queda da pressão, por exemplo.” A droga mais usada para ajudar no desmame é a metadona. “Em 15 dias é feito o desmame de opioides mais fracos, como a codeína. Depois dessa fase, o paciente faz psicoterapia de apoio para não voltar a consumir o remédio”, completa o psiquiatra. Com derivados de ópio mais fortes, como a dolantina, o tratamento pode demorar mais.

Terapias complementares também ajudam. Entre elas, a acupuntura e a quiropraxia. Esta consiste em um conjunto de técnicas manuais – com ênfase na manipulação das articulações – usado para auxiliar no tratamento de desordens neuro-músculo-esqueléticas. “A técnica ajuda a devolver a mobilidade sem dor”, diz o quiropraxista carioca Lucas Rech.

O melhor remédio para prevenir o abuso, no entanto, é a informação para conscientizar as pessoas dos riscos, disse a ISTOÉ Priya Bahri, da Agência Europeia de Medicamentos (Emea). Em uma conferência recente realizada na Índia, ela mostrou que mais da metade dos meninos e meninas americanos e europeus usam analgésicos todo mês para tratar dores de cabeça. “É na adolescência que se formam os hábitos de saúde. Por isso, é necessário levar informações aos jovens para que aprendam a se proteger”, diz Bahri.

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